Teorias de leitura e letramento

    Podemos dizer que, no início da segunda metade do século passado, ler era visto - de maneira simplista - apenas como um processo perceptual e associativo de decodificação de grafemas (escrita) em fonemas (fala), para se acessar o significado da linguagem do texto. Nesta perspectiva, aprender a ler encontra-se altamente equacionado à alfabetização. Dito de outra maneira: alfabetizar-se, conhecer o alfabeto, envolvia discriminação perceptual (visão) e memória dos grafemas (letras, símbolos, sinais), que devia ser associada, também na memória, a outras percepções (auditivas) dos sons da fala (fonemas). Uma vez alfabetizado, uma vez construídas estas associações, o indivíduo poderia chegar da letra, à sílaba e à palavra, e delas, à frase, ao período, ao parágrafo e ao texto, acessando assim, linear e sucessivamente, seus significados. É o que se denominou fluência de leitura. Nesta teoria, as capacidades focadas eram as de decodificação do texto, portal importante para o acesso à leitura, mas que absolutamente não esgotam as capacidades envolvidas no ato de ler.
   No desenvolvimento das pesquisas e estudos sobre o ato de ler, através destes 50 anos, muitas outras capacidades nele envolvidas foram sendo apontadas e desveladas: capacidades de ativação, reconhecimento e resgate de conhecimento, capacidades lógicas, capacidades de interação social etc. A leitura passa, primeiro, a ser enfocada não apenas como um ato de decodificação, de transposição de um código (escrito) a outro (oral), mas como um ato de cognição, de  compreensão,  que envolve conhecimento de mundo, conhecimento de práticas sociais e conhecimentos linguísticos muito além dos fonemas.
    Num primeiro momento, tratou-se da compreensão do texto, do que nele estava posto, ou pressuposto. Nesta abordagem, cujo foco estava no texto e no leitor, na extração de informações do texto, descobriram-se muitas capacidades mentais de leitura, que foram denominadas estratégias (cognitivas, metacognitivas) do leitor. 
    Posteriormente, passou-se a ver o ato de ler como uma interação entre o leitor e o autor. O texto deixava pistas da intenção e dos significados do autor e era um mediador desta parceria interacional. Para captar estas intenções e sentidos, conhecimentos sobre práticas e regras sociais eram requeridos. 
    Mais recentemente, a leitura é vista como um ato de se colocar em relação um discurso (texto) com outros discursos anteriores a ele, emaranhados nele e posteriores a ele, como possibilidades infinitas de  réplica, gerando novos discursos/textos. O discurso/texto é visto como conjunto de sentidos e apreciações de valor das pessoas ecoisas do mundo, dependentes do lugar social do autor e do leitor e da situação de interação entre eles – finalidades da leitura e da produção do texto, esfera social de comunicação em que o ato da leitura se  dá. Nesta vertente teórica, capacidades discursivas e linguísticas estão crucialmente envolvidas. 
   Nenhuma destas teorias invalida os resultados das anteriores. O que acontece é que fomos conhecendo cada vez mais a respeito dos procedimentos e capacidades envolvidos no ato de ler. No entanto, a leitura escolar parece ter parado no início da segunda metade do século passado.  
   Se perguntarmos a nossos alunos o que é ler na escola, possivelmente estes dirão que é ler em voz alta, sozinho ou em jogral (para avaliação de fluência entendida como compreensão) e, em seguida, responder um questionário onde se deve localizar e copiar informações do texto (para avaliação de compreensão). Ou seja, somente poucas e as mais básicas das capacidades leitoras têm sido ensinadas, avaliadas e cobradas pela escola. Todas as outras são ignoradas. É o que mostram os resultados de leitura de nosso alunos em diversos exames, como o ENEM, SARESP, SAEB, PISA, tidos como altamente insuficientes para a leitura cidadã numa sociedade urbana e globalizada, altamente letrada, como a atual.

ROJO, Roxane. Letramento e capacidades de leitura para  a cidadania. São Paulo: SEE: CENP, 2004.(p. 3)